Em meus encontros literários de outrora – aqueles que mais deixam frutos, encontros de nós conosco, especialmente quando estamos formando nossa personalidade – deparei-me com esta expressão: semear a cizânia. Perguntei a um dos meus mais íntimos companheiros à época, Antônio Houaiss (desculpa-me, Chico, relacionei-me melhor com o ex-senador do que com o teu tio Aurélio), o que significaria a expressão. A saber: literalmente, cizânia é sinônimo de joio; figurativamente, significa briga, disputa, etc.
Pois bem. Após séculos de semeadura, os campos de cizânia estão a se espalhar pela paisagem brasileira, nação afora. Aqui, a linguagem figurada encontra a literalidade da expressão, de certa maneira, para depois retornar à alegoria. Os principais cultivadores da cizânia, além de cuidar das plantações com dedicação para que alcancem os mais diversos cantos desta pátria, tentam incutir a ideia de que há somente um lado certo nesta disputa, o que remete a outra expressão figurada: é preciso separar o joio do trigo.
(Cabe aqui uma notinha: se os alemães permitem a inclusão de joio em cerveja weiss, por que diabos alguém precisaria separá-lo do trigo?). Voltando ao texto:
O problema é que cultivar cizânia em nosso país não me parece tarefa fácil. Como propôs o irmão-do-antes-mencionado-tio-do-Chico, também conhecido como seu pai, as circunstâncias transformam as pessoas aqui nascidas em indivíduos cordiais. Cordialidade, esta, que deve ser compreendida como um egoísmo afável, ou um individualismo não intencional, na minha modestíssima opinião. O que não há dúvida, contudo, é quanto à conotação negativa que o historiador impõe à proposição. Somos uma nação que forjou uma cultura não cooperativa e, ao mesmo tempo, pretensamente não destrutiva. É possível algo assim? Creio que não. De qualquer forma, há a ilusão de que somos um povo unido, fato que dificulta o trabalho dos semeadores de cizânia.
Assim, vejo um enorme contingente de pessoas totalmente alheias à disputa de poder, grupo que representa, certamente, a imensa maioria da população. Ao mesmo tempo, as duas faces da mesma moeda de poder político e econômico, fingindo haver esta batalha pelos interesses nacionais, insistem que precisamos tomar partido, afinal, “somos nós contra eles”. Os menos apaixonados até confessam que, colocando-se ao seu lado, estaríamos mal acompanhados; porém, “muito pior é estar com eles”. Justifica-se tudo, desta maneira. Principalmente, justifica-se não termos tempo para pensar: em tempos de crise, dizem alguns, refletir é dar a oportunidade da primeira ação ao inimigo.
Não importa discutirmos, nem mesmo internamente, a respeito de quem criou a situação que enfrentamos e qual a solução mais adequada. É preciso agir, urgentemente.
Neste momento, lembro-me de uma brilhante passagem do filme Madagascar 2 (!!!), quando os animais estão buscando uma solução para a falta de água na savana africana. O auto proclamado rei dos lêmures propõe que se faça uma oferenda aos deuses, atirando-se um animal vivo na cratera de um vulcão. Quando uma girafa se voluntaria, seus amigos questionam se tal ação traria resultado efetivo e imploram para que o rei ponderasse sobre sua decisão, momento no qual são interrompidos pelo propositor do plano pretensamente infalível: “Hurry up, before we all come to our senses!”

Muitas girafas vêm sendo atiradas nos vulcões brasileiros nos últimos tempos. Porém, não vou tão longe a ponto de sugerir que os semeadores de cizânia intensificam o seu cultivo propositalmente, na esperança de que a oferenda só contenha girafas alheias. Não digo isso imaginando, por outro lado, que tais pessoas se importem com os demais ou com a sociedade como um todo; infelizmente, nossa cordialidade funciona como um escudo para a manutenção dos privilégios sem que visualizemos o prejuízo que infligimos aos demais. Na verdade, creio que não faça parte do plano porque, simplesmente e nas suas próprias palavras, não há tempo para pensar, então, que plano seria esse? Nem eles mesmos sabem, mas hurry up!